21 de novembro de 2008

Diário de Bordo: Quem lê cativa outros para a leitura

A Cidade e as Serras
de Eça de Queirós

Já passava das 8h30. A manhã clara enviava os primeiros raios de sol, enquanto os alunos realizavam uma ficha de avaliação. Sentada à secretária, junto à janela, eu relia ociosamente um clássico e saboreava em cada palavra os vestígios do campo, numa personagem que aprendera os requintes da civilização. Um prazer talvez proibido em horário de trabalho, mas tentador. Pela janela entravam os primeiros brilhos primaveris e o silêncio era apenas cortado pelo canto polifónico dos pássaros, felizes com as árvores e com a sua liberdade. Cada aluno, silenciosamente, lia, reflectia, associava, interpretava e dava asas à sua criatividade. No exterior, o burburinho do mundo insinuava os sons das coisas do quotidiano. Ao sabor dos sentidos, eu continuava a reler um dos meus livros preferidos nos últimos tempos, em frente de vinte cabeças debruçadas sobre folhas de papel. A certa altura, já os primeiros raios de sol batiam na minha cabeça, quando, de olhos postos no livro, deixo escapulir uma gargalhada, como se estivesse na presença de Jacinto e dos ilustres convidados, espreitando o fausto jantar, preso no elevador encravado. Alertada por impressões de movimento, levantei a cabeça e deparei-me com quarenta olhos de espanto, que tentavam perscrutar as raízes da minha gargalhada. No final da aula, os alunos rodearam-me: queriam saber informações sobre o livro que me havia feito rir.

20 de novembro de 2008

Diário de Bordo

Pela mão da leitura

Na sala de aula uma aluna aguarda sentada.
À sua frente, atrás e ao lado, mais alunos sentados.
Um quadro preto, anuncia uma espiral de palavras em movimento, vindas de espaços azuis.
O professor entra na sala e pousa os livros na secretária.
Em silêncio, olha os alunos, através de um sorriso transbordante, cheio de palavras capazes de inundar o universo.
Um silêncio de milésimos de segundos invade a sala.
Os alunos, frente ao professor, sentiram-se sentados no interior da própria eternidade.
Passaram apenas milésimos de segundos… Uma eternidade, numa sala de aula…
Uma eternidade, num silêncio mágico…
A voz do professor apresenta-se e todos os alunos a escutam.
Um a um, os alunos também se apresentam e em cada nome há um sonho: o sonho de aprender a felicidade e de a levar o mais longe possível, através da leitura. Fazem parte de um jardim encantado, de mil cores e mil cheirinhos que também querem ensinar o caminho da leitura, porque no mundo há a fome, a doença, a guerra, o desemprego, a injustiça e a mentira.
O professor dá início à aula e fala de livros e de estrelas.
Os alunos lêem com assombro cada gesto, cada sorriso, cada olhar, cada palavra do professor que mais parece uma silhueta, um perfil que subitamente se insurge contra o ritmo monocórdico de uma pauta musical, pousando a sua mão inventiva, qual palhaço de cabelos desalinhados, de rosto surpreendentemente grotesco, onde se insinua uma beleza primordial, Pierrot cheio de vida e de espanto, questionando o mais íntimo de nós e lembrando-nos que, mesmo sem livro na mão, estamos sempre a ler e que, lá em cima, há um céu cheio de estrelas, onde podemos acrescentar mais estrelas.
São momentos fantásticos, únicos, só possíveis quando estamos atentos ao silêncio que há em nós e nos deixamos surpreender, pela palavra do outro que escutamos ou que lemos. É essa a aventura humana que todos os dias nos espera ao despertar: viver o corpo que há em nós, atentos ao mistério que é estar vivo e poder comunicar.
E, quando tudo parece morto, a palavra está lá, algures, onde a quisermos despertar. Num amigo, num professor, num mestre… num livro, no mar, numa casa, ou nas pegadas de uma gaivota na areia, as palavras têm o poder de nos encantar e de nos assombrar… Elas têm o poder da guerra e têm o poder da paz…, diria Barthes. E, através da palavra, o mestre seduz o aluno, ama-o e proporciona-lhe o caminho de Delfos, diria George Steiner, evocando Sócrates. O discípulo poderá caminhar na senda do mestre, ou atraiçoá-lo, ao descobrir um outro caminho que este ignorava ou havia omitido. A traição do discípulo é a sua afirmação. A dor do mestre põe à prova a sua capacidade de amar o ser primordial que um dia embarcou na nau do conhecimento.
Também a criança, nos seus primeiros anos de aprendizagem, parece sorrir de espanto, perscrutando tudo o que a rodeia. Àqueles que a amam, compete o papel de guias, ajudando-a a crescer, como se o seu crescimento não fosse mais do que a aprendizagem para aquilo que é a caminhada humana. Tais guias não podem estar longe do mestre, na sua função de revelar a luz ao discípulo. E, aí, o écran não é mais do que um acessório, didáctico, lúdico, que não pode jamais substituir a figura humana do educador/formador. Se ele provoca transformações profundas entre sinapses e pessoas, ele não pode substituir esse encontro entre individualidades, na troca de sentimentos, experiências, ideias, tudo aquilo que dá cor à vida humana. A felicidade continuará a estar sempre do lado dos homens, no seu encontro na busca da dimensão espiritual da vida. Ele impõe sim reflexões profundas a todos os que vivem a responsabilidade de educar, na reformulação das relações entre pessoas e entre docentes e discentes e no valor incontornável da figura do professor, responsável directo pela formação de jovens saudáveis, capazes de pensarem e agirem por si próprios, no respeito pelo outro.
O professor, esse, deverá continuar o trabalho de despertar no aluno a vontade de continuar a aprender, mas agora no caminho da autonomia do Ser.
Se os termos mestre e discípulo nos reenviam para um topos ancestral e, na era da cibernética, anacrónico, por outro lado, não é raro surpreendermo-nos com a reacção de espanto de crianças, jovens e adultos, perante a revelação de saberes, pela mão de alguém que já percorreu um longo caminho nas coisas do saber e que criou no outro o desejo para a lição seguinte. Esse alguém, se no passado era associado a alguém mais velho que provocava admiração, hoje, pela globalização do acesso à informação, poderá ser um jovem aluno, que surpreende por ter suplantado os mestres, no mundo das tecnologias. E, nestas novas interacções, onde se situa, na actualidade, o professor e como se pode caracterizar essa relação tão mal estimada professor/aluno?