20 de novembro de 2008

Diário de Bordo

Pela mão da leitura

Na sala de aula uma aluna aguarda sentada.
À sua frente, atrás e ao lado, mais alunos sentados.
Um quadro preto, anuncia uma espiral de palavras em movimento, vindas de espaços azuis.
O professor entra na sala e pousa os livros na secretária.
Em silêncio, olha os alunos, através de um sorriso transbordante, cheio de palavras capazes de inundar o universo.
Um silêncio de milésimos de segundos invade a sala.
Os alunos, frente ao professor, sentiram-se sentados no interior da própria eternidade.
Passaram apenas milésimos de segundos… Uma eternidade, numa sala de aula…
Uma eternidade, num silêncio mágico…
A voz do professor apresenta-se e todos os alunos a escutam.
Um a um, os alunos também se apresentam e em cada nome há um sonho: o sonho de aprender a felicidade e de a levar o mais longe possível, através da leitura. Fazem parte de um jardim encantado, de mil cores e mil cheirinhos que também querem ensinar o caminho da leitura, porque no mundo há a fome, a doença, a guerra, o desemprego, a injustiça e a mentira.
O professor dá início à aula e fala de livros e de estrelas.
Os alunos lêem com assombro cada gesto, cada sorriso, cada olhar, cada palavra do professor que mais parece uma silhueta, um perfil que subitamente se insurge contra o ritmo monocórdico de uma pauta musical, pousando a sua mão inventiva, qual palhaço de cabelos desalinhados, de rosto surpreendentemente grotesco, onde se insinua uma beleza primordial, Pierrot cheio de vida e de espanto, questionando o mais íntimo de nós e lembrando-nos que, mesmo sem livro na mão, estamos sempre a ler e que, lá em cima, há um céu cheio de estrelas, onde podemos acrescentar mais estrelas.
São momentos fantásticos, únicos, só possíveis quando estamos atentos ao silêncio que há em nós e nos deixamos surpreender, pela palavra do outro que escutamos ou que lemos. É essa a aventura humana que todos os dias nos espera ao despertar: viver o corpo que há em nós, atentos ao mistério que é estar vivo e poder comunicar.
E, quando tudo parece morto, a palavra está lá, algures, onde a quisermos despertar. Num amigo, num professor, num mestre… num livro, no mar, numa casa, ou nas pegadas de uma gaivota na areia, as palavras têm o poder de nos encantar e de nos assombrar… Elas têm o poder da guerra e têm o poder da paz…, diria Barthes. E, através da palavra, o mestre seduz o aluno, ama-o e proporciona-lhe o caminho de Delfos, diria George Steiner, evocando Sócrates. O discípulo poderá caminhar na senda do mestre, ou atraiçoá-lo, ao descobrir um outro caminho que este ignorava ou havia omitido. A traição do discípulo é a sua afirmação. A dor do mestre põe à prova a sua capacidade de amar o ser primordial que um dia embarcou na nau do conhecimento.
Também a criança, nos seus primeiros anos de aprendizagem, parece sorrir de espanto, perscrutando tudo o que a rodeia. Àqueles que a amam, compete o papel de guias, ajudando-a a crescer, como se o seu crescimento não fosse mais do que a aprendizagem para aquilo que é a caminhada humana. Tais guias não podem estar longe do mestre, na sua função de revelar a luz ao discípulo. E, aí, o écran não é mais do que um acessório, didáctico, lúdico, que não pode jamais substituir a figura humana do educador/formador. Se ele provoca transformações profundas entre sinapses e pessoas, ele não pode substituir esse encontro entre individualidades, na troca de sentimentos, experiências, ideias, tudo aquilo que dá cor à vida humana. A felicidade continuará a estar sempre do lado dos homens, no seu encontro na busca da dimensão espiritual da vida. Ele impõe sim reflexões profundas a todos os que vivem a responsabilidade de educar, na reformulação das relações entre pessoas e entre docentes e discentes e no valor incontornável da figura do professor, responsável directo pela formação de jovens saudáveis, capazes de pensarem e agirem por si próprios, no respeito pelo outro.
O professor, esse, deverá continuar o trabalho de despertar no aluno a vontade de continuar a aprender, mas agora no caminho da autonomia do Ser.
Se os termos mestre e discípulo nos reenviam para um topos ancestral e, na era da cibernética, anacrónico, por outro lado, não é raro surpreendermo-nos com a reacção de espanto de crianças, jovens e adultos, perante a revelação de saberes, pela mão de alguém que já percorreu um longo caminho nas coisas do saber e que criou no outro o desejo para a lição seguinte. Esse alguém, se no passado era associado a alguém mais velho que provocava admiração, hoje, pela globalização do acesso à informação, poderá ser um jovem aluno, que surpreende por ter suplantado os mestres, no mundo das tecnologias. E, nestas novas interacções, onde se situa, na actualidade, o professor e como se pode caracterizar essa relação tão mal estimada professor/aluno?

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